Thursday, August 31, 2006

ALBERTO PUCHEU





menciona a:

Antonio Cicero
Caio Meira
Cláudio Oliveira
Maurício Chamarelli
Vicente Franz Cecim



poemas:


Os 3 poemas que seguem são inéditos em livro, fazendo parte de A Nobre Arte, inserido na obra reunida A Fronteira Desguarnecida, a sair pela Azougue Editorial.




A LUTA ANTES DA LUTA


Você sabe, de nada adianta rezar no canto do ringue.
Aquele que o sobe, sobe sozinho.
As bravatas lançadas na hora da pesagem
e o peso da multidão colado em sua carne,
você sabe, lá em cima, só aumentarão seu abandono.
Você sabe também o preço que terá de pagar
se deixar que qualquer vagabundo desfigure
sua fisionomia. Mas é isso que você quer?
Não é isso que você quer. Aconteça
o que acontecer, não jogarei a toalha, não é para isso
que chegamos até aqui... Você ainda é muito novo
para perder, e sua família, muito necessitada. Você sabe,
você tem de deixar seu passado para trás, eu sei que você
não quer voltar para as ruas, para o crime, para a cadeia...
Portanto, quando subir lá em cima, eu lhe digo,
não deixe que o adversário veja medo em sua face:
se, ainda antes do primeiro soar do gongo, ele
vislumbrar uma mínima expressão de temor em seu rosto,
conhecerá o caminho mais rápido
para encontrá-lo durante o combate. Mas você
não terá nenhum instante de fraqueza nesse combate,
você está preparado, eu sei que você está preparado,
e você também sabe disso. Ninguém quer acordar amanhã
num quarto de hospital... você quer acordar
num quarto de hospital balbuciando palavras desconexas?
Ein? Você quer acordar num quarto de hospital,
com sua mulher chorando preocupada ao lado da cama?
Não, você não quer isso pra você nem pra sua família,
nem eu quero isso para o meu garoto de ouro. Por isso,
treinamos duro, por isso, treinamos tanto. Então, vá lá
em cima, já estão anunciando seu nome, suba
para o quadrado, suba, já começaram a tocar a música,
vá para o ringue e, no meio do entrevero,
por entre as saraivadas de golpes,
faça seu adversário sentir o peso do esquecimento
carregando-o para longe do estádio, carregando-o
para longe de todo e qualquer lugar.





A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ


Tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,
que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes
na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe
revolvendo as entranhas pelo avesso
(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,
tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando
simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue
(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue
da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,
e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,
no canto do amparo – sentado, curativos imediatos,
os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca
de um ponto pacífico –, ouço a voz nítida do treinador
se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,
não a escuto como um mandamento: infiel
e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz
desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho
do meu coração, espremê-lo ao sumo,
ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar comprimindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,
me dando a certeza de que o próximo soar do gongo
será o último badalo com o qual meu adversário sonhará
antes de beijar a encardida lápide da lona.



ARRANJO PARA ESSES CAMPEÕES DA PALAVRA


Não posso ser poeta, não sei contar histórias... Se eu fosse um toureiro, faria o público acreditar que eu estava a poucos centímetros da morte, mas manteria minha margem de segurança. Foi o que fiz no ringue. Nós, lutadores, compreendemos as mentiras. O que é uma simulação? O que é pensar uma coisa e fazer outra? Os melhores garotos são aqueles que até podem tomar um murro na cara, mas são inteligentes o bastante para não o querer. Quando soa o gongo, somos apenas duas solidões. Não temos medo de apanhar, mas temos medo de perder. Uma derrota no ringue não se compara a nenhuma outra. Eu combatia com qualquer um. Não me interessava quem eram. Era simplesmente indiferente para mim. Eles me batiam, eu não me importava. Quando estou no ringue, luto pela minha vida. A luta pela sobrevivência é a única luta. Por cinco dólares, eles podiam me golpear no queixo com uma marreta. Quem já ficou dois dias sem comer poderá entender. E comer é um vício difícil de largar. Quando se luta, se luta por uma coisa: dinheiro. Acho que o campeão que eu sou hoje é pela dificuldade que eu passei. Nunca fui nocauteado. Já estive inconsciente, mas sempre de pé. Detesto afirmar isso, mas é verdade: quando começa a doer, é quando eu mais gosto deste negócio. Quando vejo sangue, fico como um touro. Sou um animal selvagem, inimigo declarado de toda a raça humana. Uns dizem que sou arrogante, outros, que preciso de uma boa surra, e outros, que falo muito. Mas eu garanto o que digo. Eu não quero nocautear meu adversário... quero golpeá-lo, me afastar e vê-lo ferido. Quero o seu coração. Ele pode fugir, mas não pode se esconder. Tento acertar na ponta do nariz do meu adversário porque tento lhe enfiar o osso no cérebro. Se abrirem minha careca, vão encontrar uma grande luva de boxe. É tudo o que sou. É disso que vivo. Celebridade? Eu? O pessoal lá de onde venho diz que eu sou um vagabundo sortudo que sabe dar umas porradas. Quando você não é mais o campeão, está sozinho. Alguns ficam insanos, outros começam a beber, pois o boxe é muito intenso, e muita gente se perde. Você agüenta até certo ponto, depois quebra. Tenho tudo de que preciso: o médico mora aí em frente, o farmacêutico trabalha na esquina; daqui, posso ver a câmara-ardente, e o cemitério é logo ali embaixo na rua.




bio/biblio


Nascido em 1966, no Rio de Janeiro, Alberto Pucheu é poeta, tendo publicado Escritos da Indiscernibilidade (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003), A Vida É Assim (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001), Ecometria do Silêncio (Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 1999), A Fronteira Desguarnecida (Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 1997), Escritos da Freqüentação (Rio de Janeiro: Ed. Paignion, 1995) e Na Cidade Aberta (Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1993). Organizou o livro Poesia (e) Filosofia; por poetas-filósofos em atuação no Brasil (Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 1998). É professor de Teoria Literária da UFRJ e ensaísta.




[poética, muito breve]
O que me importa é o nevrálgico entrelaçado ao pensamento, o que tem de utilizar o "literário" para poder descobrir-se e ultrapassá-lo... mas não acaba sendo o ultrapassamento do "literário" justamente seu ápice? – um dos inúmeros paradoxos que a escrita nos coloca...

2 comments:

Anonymous said...

pucheu, eu sou o sujeito da nota, da letras - se lembra? - que a júlia apresentou - a júlia, sabe, que dividiu a mesa contigo hoje, dia 20/10. bom, achei hiperbólica demais aquela fala dela, mas de qualquer maneira já vinha querendo te mostrar uns escritos. olha, o blog tá aí, se quiser...

Anonymous said...

Alberto,
chamou-me a atenção seus "poemas boxeadores". Eu mesmo tenho um poema sobre o tema. O que fez v. escrevê-los? Meu pai costumava treinar, no quintal de casa, com amigos. Assim foi fácil para mim - era terreno da memória.

Notei agora que o movimento do boxeador, idas e vindas, upper, tem uma natureza singular. Diria mais - favorece o uso da parataxe. Concorda?
Prazer em conhecer.